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A feiticeira do Araxá que conquistou o Brasil

Matéria sobre a novela Dona Beija, em 1986, na Revista Veja.

Revista Veja, abril de 1986

Mesmo usando uma linguagem atual, a novela não perdeu o caráter de obra de época.

A Manchete investiu 20 milhões de cruzados na produção de Dona Beija para fazer com que a novela tivesse cenários e figurinos condizentes com a paisagem brasileira do século passado. Foram gastos 3 milhões de cruzados só na construção de uma cidade cenográfica em Santa Cruz, na zona rural do Rio de Janeiro, para fazer as vezes do Arraial de São Domingos dos Araxás, onde transcorre a novela. Com 8 mil metros quadrados, a cidade cenográfica abriga igreja, cemitério, pelourinho, um punhado de casas e até um aviário, com 300 galinhas, perus e patos. O único senão, no Arraial dos Araxás da novela, é o pequeno número de figurantes. Permanentemente, a cidade parece habitada por apenas vinte pessoas. Mesmo para um arraial mineiro de 1820, é uma população pequena.

O enredo de Dona Beija, no entanto, oferece motivos de sobra para atrair a atenção do espectador, prescindindo da concentração de grandes multidões ou das guerras monumentais – que eram um dos poucos trunfos de O Tempo e o Vento. O forte, na novela da Manchete, é a trama amorosa, com fartas pitadas de erotismo. Na semana deestréia da novela, Maitê Proença apareceu com os seios nus em três cenas. Na primeira, ela se banhou numa cachoeira, a metros da câmera. Depois, Beija se untou com a lama medicinal de Araxá, já mais próxima do espectador, mas de lado. Na terceira cena, a atriz se mostrou bastante, abraçando Gracindo Jr.

Desde o sucesso de Escrava Isaura, que Herval Rossano dirigiu para a Rede Globo há nove anos, as novelas mini-séries de época entraram em decadência. A Rede Manchete tentou ressuscitar o gênero há dois anos, providenciando uma produção faustosa para a mini-série Marquesa de Santos, com Maitê Proença no papel-título e Gracindo Jr. Encarnando o imperador Dom Pedro I. O gênero, porém, permaneceu prostrado: apenas 7 % dos espectadores acompanharam a mini-série. Na Globo, igualmente, a mini-série de época O Tempo e o Vento, levada ao ar há um ano, esteve distante do sucesso. A trama complicada, que misturava passado e futuro, espantou os telespectadores da frente dos vídeos. Depois desses fracassos seguidos, o gênero ressurgiu na semana passada com um novo vigor, e com ecos de Escrava Isaura. Ressurgiu com Dona Beija, a novela que a Rede Manchete está apresentando às 21h20.

Dirigida pelo mesmo Herval Rossano de Isaura, Dona Beija escorou sua eficácia em duas pilastras. Em primeiro lugar, privilegiou a ação e a rápida sucessão de acontecimentos. Só no capítulo de estréia, o espectador viu Ana Jacinta de São José nascer, receber o apelido de ’Beija’ – por ter a vivacidade de um beija-flor -, soube que ela era filha de mãe solteira e acompanhou o crescimento da menina. Ainda no mesmo capítulo, morreram os avós e a mãe de Beija (Maitê Proença), que ficou noiva de Antônio Sampaio (Gracindo Jr.) mas foi raptada pelo ouvidor do rei, Joaquim Inácio Silveira da Mota (representado pelo ex-galã Carlos Alberto, que não aparecia na televisão há dez anos). Planejada para durar apenas 77 capítulos, enquanto as novelas costumam se estender por mais de 150, Dona Beija não perde tempo em diálogos longos ou cenas demoradas. ’Quisemos concentrar a novela’, explica Zevi Ghivelder, 48 anos, diretor da Manchete.

A segunda virtude de Dona Beija foi ter conciliado satisfatoriamente a época em que se passa a novela, na primeira metade do século XIX, com a modernidade. A Manchete parece ter reconhecido o erro cometido em Marquesa de Santos, em que os personagens se tratavam por ’Vossa Mercê’, faziam gestos empolados e usavam termos de antanho. Em Dona Beija, ainda que os homens tratem as mulheres por ’senhôras’, a linguagem flui mais fácil, sem torneios rocambolescos. ’Na Marquesa, a fidelidade que quisemos dar à linguagem da época resultou afetada no vídeo’, explica Ghivelder. ’Por isso apelamos para a fala moderna em Dona Beija’.

Isso porque Beija foi uma grande cortesã, e a novela mostrará isso claramente. Nos próximos capítulos, o ouvidor Mota será chamado a Portugal, e Beija se estabelecerá no Arraial dos Araxás. Lá, será hostilizada pela população, e principalmente pelo seu ex-noivo Antônio Sampaio. Ela abrirá então uma casa pública, a Chácara do Jatobá, onde os homens poderão entrar pagando pelo ingresso. Ao fim de cada noite, Beija escolherá um deles para compartilhar o seu leito.

Esse leito, aliás, provocou problemas cenográficos. Querendo ser fiel ao mobiliário do século XIX, o figurinista Arlindo Rodrigues descobriu uma cama autêntica. Naquela época, no entanto, as camas eram menores que as de hoje, e o diretor Rossano não gostou. ’Essa cama é pequena demais para uma mulher que recebe um homem diferente por noite’, disse ele aos marceneiros. Foi feito então um outro leito, muito maior. Rossano reclamou novamente. ’Não pedi uma cama para encenar uma orgia coletiva’, afirmou.

O erotismo de Dona Beija será conduzido por Maitê Proença, que faz agora o seu segundo papel no século passado. Como a Marquesa de Santos, a atriz não estava muito convincente. Ela parecia uma boneca trajando vestidos de baile. Como Beija, Maitê está mais solta e verossímel. Seu grande trunfo, porém, continua a beleza, já que sua expressividade está restrita aos lábios: quando Beija está irada, Maitê estica os lábios, quando fica triste, a boca se contrai.

Em Marquesa de Santos, Maitê contracenou com Gracindo Jr., que fazia o papel de Dom Pedro I. Agora, o ator volta aos braços da mesma atriz como o eterno apaixonado Antônio Sampaio. Com a diferença que, livre da pompa imperial, Gracindo está bem melhor. Na primeira semana, ele deu uma boa noção televisiva de como se comporta um homem corroído pela paixão e pela rejeição amorosa: de maneira violenta, alucinada e vingativa. Até o fim de Dona Beija, Gracindo e Maitê trocarão carinhos, juras de amor eterno, tapas e agressões verbais. Já o veterano Carlos Alberto, que representou inúmeros papéis em novelas de época e estava afastado do vídeo desde Bravo!, da Globo, passeia por Dona Beija com o mesmo ar impassível de sempre. Carlos Alberto não é um ator de talento notável, mas não poderia estar ausente numa novela que recupera o prestígio dos temas históricos.

Pelo menos nos três primeiros capítulos, a nova investida da Manchete no terreno da ficção histórica rendeu bons dividendos. A rede esperava uma audiência de 10 % dos espectadores, e acabou conseguindo cerca de 20 % no Rio de Janeiro e 6 % em São Paulo. No total, portanto, superou suas expectativas. O artífice desse começo promissor foi o diretor Herval Rossano, 50 anos, um especialista em novelas de época. Ele dirigiu vinte novelas (duas delas no Chile), inclusive Escrava Isaura, exportada pela Globo para 26 países. A filosofia de Rossano é simples: explorar ao máximo as tramas folhetinescas, buscar nos detalhes de figuração o espírito da época que retrata e conseguir que o elenco se comporte com naturalidade, mesmo vestindo roupas que pareecm fantasias de escolas de sambas. ’Admito que sei dirigir bem novelas de época’, diz Rossano, sem falsa modéstia. A preocupação do diretor é consolidar o departamento de teledramaturgia da Manchete. ’Só assim aumentaremos o mercado de trabalho para técnicos e atores’, avalia. Mais do que isso, Rossano estará aumentando o número de opções para os telespectadores do horário noturno.

Por Diogo Montano

Diogo Montano é Bacharéu em Ciência da Computação, pós graduado em Gestão de Negócios, e trabalha há quase vinte anos unindo duas coisas que sempre gostou: comunicação e tecnologia. Cresceu assistindo à Globo e Manchete, canais de tv que tinham as melhores imagens da região. Em 1999, ainda antes de entrar na faculdade, publicou a primeira versão deste site, logo após a venda da Manchete.